sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

PALAVRAS RECORTADAS OU UM ENSAIO EDITORIAL


Os Ekos da Vila do Príncipe romperam o silêncio da palavra e ocuparam o espaço em branco. Faz três anos que insistem em lançar loas e comemorar as gentes que povoam a terra e o imaginário da Vila, que já não é do príncipe, mas mantém a soberania das pessoas, lançando pelas Minas Gerais, pelo Brasil e pelo mundo incontáveis pensamentos e pensadores. Por suas páginas passaram a experiência das palavras de Feiz Nagib Bahmed, a primeira testemunha deste feito; a responsabilidade e comprometimento do médico Walter Machado; a altivez e serenidade de Mário de Almeida e Walderes Miranda; a paixão da historiadora Zara Simões; a devoção de Ari Gonçalves de Almeida; a alegria de Antônio Farnesi; a sabedoria de Geraldo de Miranda Nunes - conhecido como Seu Didi - e a delicadeza de sua esposa, Dona Celina. E o Ekos não se cansa, nesta edição lança a voz de José Reis Junior - José Rela - e de Francisco da Cunha Freire - Cici - dois singulares personagens serranos que deram vida ao cotidiano da cidade, com seu empreendedorismo e trabalho.

Mais do que narrar a história destes valorosos personagens, o Ekos pretende registrar o Serro e seus olhares para guardar no papel o que a memória pode deixar se perder. Adiar a palavra significa deixar o que precisa ser dito se dissipar... dissimular... tardar a tornar-se fôlego. Expectador das ideias e adorador das historias que compõem as vidas e venturas serranas, o Ekos de Minas transparece a arte que conta o Serro nas telas de Magno Zeó e, nesta edição, de Rafael Múcio. Na inspiração de Claudio Luciano Ferreira que reconstrói a devoção aos santos católicos em arte (foto à esquerda).

Para não deixar a palavra ir, dizer o que precisa respirar e confirmar o olhar, o Ekos de Minas inaugura a provocação editorial que, a partir desta edição, vai instigar vontades e propor novos parâmetros para o olhar. A palavra que não fala é a primeira inspiração. A sutileza do que não declara a voz, mas conta olhares e os maus dizeres, que não promovem crescimento, mas outros males: entendidos e desentendidos. 

É preciso abrigar a intenção e dissipar o desejo de agradar, desagradando o outro, para que exista desenvolvimento. A palavra que inventa intenções envenena a verdade e impede a harmonia. É preciso mudar realmente. Não apenas os atores, mas a intenção. Ampliar o pensamento para que o bem comum se sobreponha ao egoismo. Valorizar as boas iniciativas, ainda que não ofereçam benefício direto. O quintal do vizinho deve ser tão verde quanto todos os outros. O que determina o bem é o olhar e a intenção. Obrigada e boa leitura.


“O OXIGÊNIO PARA VIVER É O MEU TRABALHO”

Em 19 de maio de 1942, nascia José Reis Junior, primogênito do casal José dos Santos Reis e Maria Eugênia Dumont Reis. Hoje, o senhor de 70 anos ensina serenidade. A vida reservou a José Reis grandes desafios, a experiência bem vivida passa pela morte prematura do pai, desfiles de Carnaval e muita vida. Assumiu a família ainda menino e trabalhou duro para manter a mãe e os dez irmãos. Parou de estudar para se dedicar ao labor, mas garantiu formação superior aos irmãos, que se tornaram médico, engenheiro, dentista, professor, administrador, advogado. Casado com Terezinha Marly de Miranda Reis e pai de cinco filhos (Fernado, Luciano, Thais e as gêmeas Eliana e Elisa), José Rela - apelido que ganhou na época da escola - esbanja sabedoria. 




Trabalho
Minha historia é longa, mas é fácil resumir. Quando meu pai morreu, em 1960, eu tinha 17, 18 anos e dez irmãos menores. Fui obrigado a parar de estudar para assumir uma nova vida, tive que trabalhar para sustentar a família. Entre minha mãe, uma empregada de muitos anos, eu e os irmãos, éramos treze. Minha mãe me entregou a chave do comércio do meu pai e comecei vendendo tecidos e calçados. Por volta de 1985, montei minha empresa de show pirotécnico. Antes, em 1972, morreu um fazendeiro muito nosso amigo na região e fui a Diamantina buscar uma urna para ele. Voltei quinze dias depois para pagar a urna e pedir que ele me desse o endereço de uma fábrica. Ele não quis me entregar na hora, mas com um espaço de tempo ele me deu o telefone de uma fábrica e eu comprei cinco urnas. Lembro que, na época, minha mãe disse: - Meu filho, você está agourando o povo do Serro. Dois dias depois vendi uma urna. Se você me perguntar quem morreu ontem, não me lembro, mas desta não me esqueço: Dona Josefina, diretora de um grupo em Alvorada de Minas. Pode estar chovendo, fazendo calor, dia, noite, não tem horário. Estamos sempre com o celular ligado, de plantão, prontos para atender. O oxigênio para viver é o meu trabalho.

Casamento
Conheci a Marly e, em dezessete anos, namoramos e noivamos. Ela disse: - Você está me enrolando. Eu disse: - Eu tenho um irmão que está fazendo medicina - eu gastava com ele como se fossem hoje R$5 mil mensais. Ele se formando, você pode arrumar tudo que nós nos casamos. No mesmo ano em que meu irmão se formou, eu me casei. Hoje, tenho 39 anos de casado e cinco filhos. Dos meus irmãos, eu perdi um, o Toninho, ele era Engenheiro Civil. 
Vida 
A vida é muito boa. É como meu pai falava: - No dia em que eu morrer eu vou triste, porque a coisa aqui é boa. Eu não quero morrer não. A morte é uma coisa muito estranha, quem vai não volta para contar o que é. Não sei informar quantas pessoas já enterrei, mas ninguém voltou. Me perguntam: - Você não tem medo não? A gente tem que ter medo é de quem está vivo, quem morreu não volta mais. Nunca tive medo de quem se foi. Quando perdi meu pai, pedia para ele aparecer para mim, ficava em um lugar sozinho, escuro e ele nunca apareceu. A morte é tão normal quanto nascer, mas ninguém aceita. Os minutos e a vida passam rápido.

Carnaval 
Em 1950, meu pai dominava o Carnaval. Eu era muito menino e me lembro dele levando minha mãe para o Clube. Isso fica no sangue. Meu pai era muito alegre. Depois que ele morreu, ficamos muito tempo sem mexer com Carnaval. Mas os serranos me cobravam muito e nós voltamos. Mantivemos a tradição, por uns quinze anos. Então, a gente sem querer muda, vai ficando mais velho e passa a cansar, não querer tumulto. Sinto saudade, quando vejo uma escola muito boa, lembro do tempo da gente, mas a vida é passageira aqui. 

Legado
Minha mãe foi a primeira “mulher” que eu tive. Casei duas vezes: com a minha mãe e com a minha esposa, Marly. Foi muito boa mãe. Ela morreu, há dez anos. Convivemos por 40 anos. Quando meu pai morreu, ela me deu a chave da loja e as coisas pessoais dele e, eu tenho isso guardado no meu cofre, até hoje. Eu não tive infância, não jogava futebol, meu negócio era o trabalho. Sempre convivi com pessoas mais velhas do que eu.  A pessoa tem que saber viver, é lógico. Se você quer mudar sua vida, é preciso responsabilidade. A pessoa cai e sobe, mas para cair é muito rápido. Para construir uma vida é muito tempo, para destruir, uma semana. O melhor do ser humano é a cabeça, tendo a cabeça boa o resto está bem. Falo demais com meus filhos, respeito é muito importante. Nunca abuse das pessoas. Respeito é tudo. O mal está sempre perto, você tem que saber viver nesta terra.

Morte
Minha mãe teve um derrame e estava ao lado do meu irmão médico. Levamos minha mãe ao hospital e ela ficou 15 dias internada em Belo Horizonte. Já sabíamos que ela iria morrer. Queria fazer um enterro decente para ela e mandei buscar a urna que eu queria aqui no Serro. Acompanhei todo o preparativo do corpo, eu mesmo a maquiei. Esse dia precisei tomar calmante. Fiquei muito baqueado e, depois de uns três dias, precisei procurar um médico. Quando é seu sangue, a coisa muda. Na hora você acha que aguenta, eu aguentei, depois a ficha vai caindo. Quero que me enterrem junto com ela. Perdi meu pai, Toninho e minha mãe. Construí a morada eterna da família no cemitério do Serro. A morte é uma ida sem volta. É a sequência da vida. 

O apelido
Eu estava com seis, sete anos e meus avós, que eram fazendeiros no Deliz, vinham para o Serro e ralavam o queijo na casa da minha mãe, que geralmente guardava a rala do queijo e punha no pão para eu levar  de lanche para o Grupo. Eu muito menino, punha o pão na carteira e os meninos me roubavam a rala. Com seis, oito meses já estava com o apelido: o menino da rala, José Rela.



TRABALHO E FAMÍLIA: UM SERRANO DE VALOR

Francisco da Cunha Freire, conhecido como Cici, é um serrano de valor. Nascido na época em que a palavra bastava, Cici conserva e repassa para os filhos o legado de muito trabalho e retidão. Filho de José Azevedo Freire, o Zé Congonha, e Noemi Dayrell da Cunha Freire, Cici é casado há 42 anos com Maria da Conceição Souza Freire, com quem teve quatro filhos: Renata, Rejane, Francisco Junior e Sandra. Com o pai, iniciou a vida de muito trabalho na Padaria Santo Antônio, chamada de Pão do Serro: Zé Congonha cuidava da produção de pães e Cici era responsável pela compra dos insumos e comercialização dos produtos na região. Ainda menino, experimentava a responsabilidade e o trabalho que são o norte dos seus negócios e realizações. Bem humorado e espirituoso, sempre ao lado de Dona Conceição - que participa das histórias e feitos do marido e compartilha alegria -, Cici nos dá a oportunidade de aprender os caminhos da palavra e conhecer a sua trajetória, que ajuda a contar a história do Serro.


Infância
Desde muito pequeno, já ajudava o meu pai na padaria, amassando e enrolando o pão. Papai sempre na frente. Somos onze irmãos. A gente trabalhava e brincava na rua. Adorava descer a escadinha da Santa Rita com carrinho de direção. A gente brincava muito na Praça e tinha um jardineiro que brigava porque nós pulávamos as arvorezinhas. Lembro-me também do “Miguel Já Ouviu”, um doido que tinha no Serro, que passou em nossa casa uma vez e minha mãe começou a perguntar dos meninos. Meu irmão chegou e ele disse: - Este menino é muito bonzinho, muito educado. Na hora que cheguei da rua, minha mãe perguntou: - E este aqui? - Este é o moleque mais “ensobordinado” da Praça! (risos)

Padaria
Papai começava cedo, três horas da manhã. Quando eram seis horas, ele nos chamava para ajudar. A gente passava a massa no cilindro e enrolava o pão que entregávamos nos bares, no Colégio. Tinha um bolinho que mamãe fazia e nós entregávamos nos bares. Com 18 anos, mais ou menos, mudei para Belo Horizonte para trabalhar com meus tios, Mauro, Geraldo e Antônio, no Café Pampulha. Fiquei lá seis anos e, nesse tempo, trabalhei também na Transfarma, com transporte de medicamentos.

Casamento
Em uma vinda ao Serro, passei na casa do meu tio Geraldo e a minha tia me deu uns embrulhos para levar a Belo Horizonte. Fui à casa das meninas entregar os embrulhos num pensionato, no Prado, encontrei com a Conceição e fiquei embrulhado até hoje (risos).

Tropeiro sobre rodas
Voltei para o Serro, em 1968, para trabalhar com o meu pai. Compramos o primeiro carro para distribuir pão na região e depois outro para transportar o trigo de Belo Horizonte para o Serro. Entregávamos o pão em 16 cidades. As estradas não eram boas. A gente rodava a região toda e não tinha asfalto nenhum. Um ano que choveu muito, muitas cidades foram atingidas por enchentes, eu cheguei em Senhora do Porto e estava faltando tudo, o pessoal ajoelhou e agradeceu. Trazia cartas e levava encomendas de uma cidade para outra. De Rio Vermelho trazia carne de porco, queijo, manteiga, rapadura. Sempre tive muita sorte com o caminhão, ele não estragava na estrada, mas quando era solteiro, sexta-feira viajava para Diamantina e o carro sempre atrapalhava lá (risos)!


Loteria

Ganhei na loteria uma vez e comprei a roça. Fiquei com o bilhete no bolso mais de quinze dias. Na ida para Belo Horizonte, parei em Sete Lagoas para jantar e conferi o bilhete: ganhei o primeiro prêmio. Fui para o hotel, fechei a janela e coloquei a carteira embaixo do travesseiro com medo de ser assaltado. Fui para Belo Horizonte, carreguei o caminhão e conferi direito na Loteria Campeão da Avenida e recebi o prêmio.

Negócios 
Na década de 1970, criei a Mercearia Cilu, no casarão do Hotel Glória. Vendia frango, verdura. Aproveitava o caminhão para a entrega de pão e trazia a mercadoria de Diamantina.
Depois comecei com a venda de pneus e criamos a Cinata, perto da rodoviária. Depois construí o prédio - onde hoje ficam o Chico Motos e a Cinata - de um lado montei a Cinata Pneus e do outro a Cinata Padaria.


Cici, José Mário Pimenta, Zé Congonha e Geraldo Márcio - Bitinho



O SERRO RESPIRA ARTE


O Serro tem encantos e recantos que permeiam a obra e inspiração de um sem fim de autores, atores e artistas. O Ekos de Minas apresenta um recorte da obra de Rafael Múcio (foto abaixo), artista plástico serrano, formado pela Escola Guignard, que retornou à terra em 2006. O artista empresta ao Serro seu olhar e sua arte e dissipa o amor à terra natal pelos rincões Gerais. O trabalho de Rafael Múcio está em permanente exposição em seu ateliê instalado na Rua São José.

Na capa, a obra de Cláudio Luciano Ferreira, outra inspiração que constrói e reconstrói o cotidiano da cidade em sua obra. A imagem de São Miguel que adorna a abertura dos Ekos da Vila é assinada pelo artista, que transforma isopor, papelão, biscuit, tecido em peças sacras. Nascido em Rio Vermelho, Cláudio mudou-se para o Serro ainda pequeno. Atualmente, vive em São Paulo, mas passa temporada na cidade e anuncia: em breve exposição!